Renato Zapata é paulistano de 1988. Escritor, jornalista e compositor, já publicou os livros Estopa (edição de autor, 2014) e Menino Semente (Movimenta, 2015), além de ter participado de antologias de contos, como Orelhas, do coletivo literário Djalma. Em dezembro de 2021, lançou de forma independente o seu primeiro romance, Ensaio Paralelo.
Tão enrugada há décadas que as manchas de velhice a deixavam reluzente, ensolarada do tamanho do sol. Tão branca que suas lágrimas ficavam por ali escorridas, nas bochechas, avermelhavam a pele num caminho d’água. Tão serena na idade, tão lembrança de menina. Tão presente a jovem Natividade, cabeleireira do bairro, a fofoqueira, como suas clientes diziam entredentes e apesar disso escavando-lhe os segredos. Ela que ainda tinha certa memória, mas que já não conseguia se vestir sozinha, não cozinhava, não pertencia mais à ordem dos dias da semana. Costumava lembrar-se de dançar, todos os dias, ouvindo um bolero ou um samba de sua época, ela falava assim aos risos, da minha época, do meu tempo, e perguntava várias vezes de quem era aquela canção, de quem é mesmo esta canção, e imitava as cantoras de rádio, é do meu tempo essa daí, hein, ai que saudade, e cantava como se ouvisse vitrola.
Quando começou a se esquecer, Natividade não adivinhou que, a cada esforço de lembrança, também a sua autonomia seria subtraída à vista dos outros. E foi que, pois não, não por menos abestalhada, e ela mesma fazia gracinha dos esquecimentos, a velhice é assim: descabida, desastrada, e desandava a arrumar os apetrechos da casa mudando-os sempre de lugar, e a costurar conversas emendando-se em assuntos embaralhados, ou a dormir somente quando seu marido, o seu Manoel, meu moço velho, deitava-se ao lado dela, cuidadoso, e a cobria de ilusões amorosas. Após uma vida de encontros às cegas, recatada, era ela quem o procurava agora, atiçada por um fogo juvenil das noites de verão, antes muito tímida para assuntos de intimidade, agora desejando o alvoroço sob os lençóis puídos. Desde que adoecera Natividade acreditava ser imprescindível manter-se elegante, mesmo de manhãzinha. Igual à época em que se arrumava só para as freguesas, para que viessem ao seu salão de beleza, ela repetia, elas queriam ficar tão bonitas quanto ela, tão bonitas quanto eu.
Tudo isso embora a rotina do casal na velhice seja a de sentar-se à mesa, às seis da tarde, rodeados por pão, manteiga e café, e depois uma sopa à noite. Já há algum tempo, porém, era o seu Manoel quem esquentava a água, quem passava o café e ajeitava a garrafa térmica, e enfim era ele quem colocava o adoçante e por último lhes servia. Uma mudança significativa desde que haviam se aposentado, não tão menor quanto a de cuidar da neta Laura todas as tardes – Natividade só percebia que deixara de fazer o café quando a xícara queimava-lhe os dedos: a fumaça esquentava o rosto, o líquido fervia a língua. Diante do desaforo, ela agradecia o marido, dia sem café, dia perdido, não há dia seguinte se não houver o café de hoje. Perguntava então sobre os ingredientes para a sopa: cozinharia uma sopinha de feijão ou mandioca, uma sopa, e em seguida se esquecia disto também. Os costumes de Natividade eram desfeitos e refeitos em poucos minutos; instantes que pareciam desacontecer, idênticos.
Já a pequena Laura rondava os avós enganchando-lhes num planeta encantado, fantasia deveras lúdica – tudo a evaporar. Natividade ora propunha inúmeras brincadeiras com a neta, beijando-a desmedidamente, ora assumia uma postura séria, distante, os olhos equivocados numa parede sem que mirasse de fato a parede, ausente até de pensamentos. Era que assim variavam as idades dentro dela, sem que percebesse, jovem ou adulta, e nesses intervalos um limbo carregava-a para dentro, casulo antigo e ao revés que a recolhia de volta. Não orava mais, ela que sempre cuidara tanto dos outros, hoje apenas os olhava. E assistia às próprias recordações sem repeti-las a ninguém, o passado como um alvo incerto, por pouco ainda aparente. Ao seu Manoel restava cuidar da neta e, resignado, aguardar a vovó Nati desentranhar-se.
Para além de lhe ser tomada a memória, aos seus olhos era o próprio mundo que partia antes dela. E foi entre uma saudade e um desatino que certo dia Natividade seguiu rua afora, o portão da casa abrindo-se no embalo cantarolante dos seus passos, recortando na voz trechos de canções esquecidas. E todas as casas lhe pareceram muito vermelhas, o asfalto de barro, as folhas das árvores de inverno, e o céu avermelhou-se aos olhos rubros e errantes do sol, e ela mal podia enxergar a sabedoria que lhe corria nas veias, apesar de andar lentamente, pois tudo o que Natividade tocava servia-se do passado, um borrão, uma claridade, um suspiro, tudo é vermelho demais, tudo-tudo menos aquela rosa amarela. Tudo está vivo menos a rosa amarela.
Natividade então arrancou a rosa imaginando dá-la de novo à vida; perdeu-se. Tudo escureceu, inclusive os espinhos que teimaram em ferir-lhe as mãos. Lá da casa, seu Manoel forcejou os músculos e queixou-se por ela, vasculhando os cômodos nos óculos empedernidos, a cabeça girando na osteoporose da sua velha. Precisou deixar a pequena Laura num dos quartos, trancada onde seria menos perigoso – seu Manoel inventou-lhe um castigo por desobedecê-lo no banho. E não tão longe encontrou a esposa asilada numa mureta de esquina, delicadíssima, a rosa amarela no nariz
— Dedé, meu amor – essa rosa é pra você
— mas onde já se viu, Natividade, agora preciso cuidar de duas crianças? Seu Manoel não sabia se alguma característica física dele fazia a sua velha recordar do antigo namorado – nunca sequer vira uma foto do finado Dedé – ou se seriam apenas lembranças extintas, sentimentos teimando em renascer, como se ele próprio o marido não tivesse bastado para afugentá-los dos outros amores dela. Mas seu Manoel compreendia a doença, e da esquina recolheu-a no corpo todo abraçado, prevenindo uma queda, uma pisada em falso. Mas quem tropeçou foi ele ao sentir o cheiro de urina, e tocar desconfiado as próprias calças, no desespero não teria percebido, e tropeçou quando olhou a roupa da esposa, a urina untando as pernas bambas, e aí sim seu Manoel segurou o choro, embalsamou-se nela
— essa rosa é pra você, Dedé, só pra você, meu amor.
No caminho as desavergonhadas casas não estavam mais vermelhas. De costas pro sol, Natividade enxergava só os tamancos e o asfalto, qualquer descuido e ela descambaria, tomei leite a vida toda só pra ter os ossos rígidos, e nada. E era o Dedé quem de prontidão guiava seus descuidos, pra onde ele a levava, ela assustou-se, era uma fineza aquela rosa amarela, quem lhe dera? E arregalou os olhos, buliçosa, embutida no dia em que uma amiga, a Nenzica, sim, a Nenzica contara que o Dedé era viado. Casamento desfeito, cidade do interior abalada, joias escondidas num baú, o Dedé enamorado com o gerente do banco? Não é possível um negócio desses!
A pequena Laura berrava no quarto, os cachos sobrepondo os olhos cinzas de tão azuis e lacrimosos, cadê a mamãe que não chega? Seu Manoel diante disso largou a esposa na sala, a porta trancada à chave e ferrolhos, e resgatou a neta. Desceu as escadas, a pequena Laura no colo, cada degrau uma batida dos chinelos pra dizer mais tarde à sua filha, é urgente contratar alguém pra ajudá-lo a cuidar das duas. E lá embaixo a Natividade, nas paredes os pratos de porcelana e os quadros pintados por ela há anos, a maioria de paisagens e flores, e ela os mirava absorta, ainda de pé o xixi nas calças, que casa bonita, de quem será essa casa, adorei os desenhos
— Natividade, olha pra cá, a Laurinha quer te falar uma coisa
— essa não é a minha neta, essa menina só está com as roupas dela!
— vó Nati, não deixa mais o vovô me pôr de castigo.
E subiram os três pra dar banho na vovó. Primeiro a calça empapada, o cheiro azedo e os pés passando indecisos nas partes, deixando-se levar; as outras peças vinham em seguida na blusa larga e no sutiã tão frouxo e na calcinha um calçolão que o seu Manoel ajeitou num canto a roupa suja – nem mais pra se arrumar pela manhã ela anda disposta. A neta então grudou na rosa amarela, sentada na tampa da privada, brincando de apertar os espinhos que nem doíam tanto assim. E quando ele começou a enxaguar a esposa, e colocou-lhe a esponja nas mãos, ela atreveu-se e suspirou, obrigada, Manoel, e lavou-se com os óculos ainda na cara, seu Manoel esquecera de tirá-los. No quarto uma penteadeira, os santinhos benzendo as fotos em preto e branco, uma caixinha de brincos e colares: a rosa amarela pendurou-se num vaso d’água. Era de frente praquele espelho, tão antigo um presente, que Natividade recordava o tempo; fixava não um rosto e sim o caminho das rugas, e agora o dia em que o açougueiro perseguiu seu Manoel com uma peixeira, tudo por ele dever alguns cruzeiros, um mês que já pegava fiado: a cidadezinha do interior escandalizou-se porque o motivo era outro, o de traição com a mulher do homem, e mudaram-se pra capital antes que Natividade descobrisse, e ele perdesse sem remédio o pinto pro açougueiro. Foi mudança de trem-mala e cuia, que não tinham lá muita coisa. Ela abriu um salão de beleza no quintal da frente, na capital, e vinham-lhe muitas vezes as mulheres da vida da redondeza, e lhe contavam cada despautério, tanta coisa indecente eu até morria de rir, gargalhava delas, as freguesas tão vistosas nesta cidade, mesmo as mais idosas, manhê?, e sim muito vistosas a rosa amarela e os fios grisalhos, as pétalas molhadas que culpa tinham em despentear em vez de alinhar o cabelo. Natividade ajeitava a flor na cabeça e a descia como se talhasse uma estrada, um carinho nela própria e nem percebia sua filha atrás, no espelho olhando a mãe se penteando com a rosa amarela, uma mísera rosa colhida num jardim alheio, anunciação de que uma névoa em breve tomaria de vez sua vida. Natividade engoliu três comprimidos, com bravura, e ouviu sem ter certeza se reconhecia quem falava
— tô indo embora com a Laurinha, mãe, o pai já vai trazer sua sopa, tá? – tudo bem, minha filha – vai com cuidado, viu?
— deixa eu colocar essa flor no vaso, você pode se machucar.
Mas seu Manoel não trouxe a sopa. Usurpou a garrafa de uísque, contrariou a vacinação contra a velhice: não beber nem fumar, nem muito açúcar nem tanto sal. E bebeu arrancando a dentadura para doer-se mais decrépito, e sentou-se no chão, não me importo com a coluna, bebo até também me mijar nas calças, e se tivesse outra garrafa tomava mais, e ficou no escuro, lá em cima a Natividade e a rosa amarela em punho.
De pé, a camisola sob o abajur aceso, atrapalhadas, uma das alças caídas e um pouco de frio, molenga ela sorria. A rosa amarela feito um bastão, acanhada, pura, intrometida, esta flor se parece comigo, esta flor é tão minha quanto eu sou dela, e Natividade seduziu a rosa deitado-a delicada, o olhar batizando os dias tão bonitos que passara com o Dedé, não me lembro se fiz amor ou não com o Dedé, lembro que ele era carinhoso, muito gentil o chapéu de lado, e a flor ao contrário na calcinha que ela afastou para que a rosa cuidasse de entrar como se perdesse a virgindade, os espinhos entrando nela que abafou um grito, sentindo o peso daquele corpo de homem, a ponta da flor manchada de vermelho e saindo, e o amarelo da rosa pousando no bico do seio, desabrochada, um corte arrastado e os dedos raiados de sangue. Num cochilo, Natividade não soube se o Dedé já havia ido embora ou se menstruara tão pequena correndo na rua de terra do sítio até descobrir com sua avó que toda mulher sangrava, lave-se. Um pano quente e sarou. Outro cochilo, e adormeceu.
Despertou quando seu Manoel repicou nas escadas. Ela ergueu-se devagar e, sem querer, amassou a rosa com a sola dos pés, ele me paga se tiver bebido demais. E seu Manoel aportou-se no batente, olhou-a descabelada e deitou-a sob o cobertor, as palavras lambidas, mudas no bafo da boca. Ele enfim também se deitou, a cama dividida em que há anos se amavam ali, e deixou sua mão despencar sobre a barriga dela. Natividade sentiu cócegas e um sorriso abriu-se junto àquele brilho no meio da noite. Era o dia do seu casamento, ela muito jovem, e a festa, os convidados, a grinalda, o pó de arroz, o buquê, a lua de mel e a lavanda que passou em volta do umbigo, disso ela lembrava, a expectativa de quando ele fizesse a tal mágica, um toque sensível e firme no umbigo, invisível tamanho devia ser o segredo dele, e esperou à meia-luz que o Manoel fosse cuidadoso, que nada doesse tanto no umbigo dela assim tão pequenino. E Natividade tomou o maior susto quando ele a penetrou num lugar inesperado, a boca arreganhada em silêncio, não é possível, por ali eu faço as necessidades, nem me lavei direito. Mas ai Manoel, meu amor, essa é a melhor lua de mel das nossas vidas.
Foto de Anna Carolina Rizzon.